Sobre a mesinha de cabeceira do jovem roteirista indiano Prashant Pandey, a desorganizada pilha de livros entrega as fontes de inspiração para seus filmes. Repousam ali novelas de espionagem, como O Dia do Chacal, de Frederic Forsyth, e O Jardineiro Fiel, de John le Carré. A saga de O Poderoso Chefão, de Mario Puzo, também está lá. E as referências ocidentais continuam na coleção de dvds espalhada sobre a cama de solteiro. Lá no meio, Cidade de Deus. “Sério que é brasileiro? Eu adoro esse filme. Não sei até hoje como fizeram aquela cena da galinha!”, conta Prashant.
A quitinete do roteirista fica em um prédio baixo e engolido por uma floresta, ao lado de cinemas multiplex, outdoors de filmes em lançamento e esgoto a céu aberto. É nesse ambiente sem o glamour californiano que Bollywood fervilha. Estamos em Bombaim, o coração econômico e cinematográfico da Índia. A cidade foi rebatizada como Mumbai em 1995, mas o “B” de Bombaim ainda serve de inicial para a Hollywood deles.
O bairro do roteirista é o suburbano Andheri. Enquanto equipes de filmagem gravam cenas a poucos quilômetros da cidade, na Film City, é em Andheri que giram as engrenagens de Bollywood. Lá ficam as sedes de produtoras como a gigantesca Yash Raj Films, a maior do país, a Balaji Telefilms e a Mukta Arts, além de inúmeros escritórios que oferecem todo tipo de serviço relacionado a cinema. Em Andheri, o mundo gira em torno da indústria dos sonhos. Mais um resultado do crescimento da Índia? Sim. Mas isso não veio do nada.
O cinema tem um papel forte na cultura indiana desde a década de 1940. Nessa época o país se tornava independente da Inglaterra, e a telona ajudou a criar uma identidade nacional em um país cheio de culturas e religiões diferentes. Trinta anos depois, o cinema mostrou a insatisfação da população com o governo corrupto, através de filmes que exaltavam a violência e o crime nos anos 70. Mas o boom começou mesmo na década de 1990, quando veio a liberalização econômica e o país começou a crescer 8,5% ao ano, em média. Nisso emergiu uma classe média com novos hábitos de consumo e valores, geralmente avessos às tradições indianas. E o conflito de gerações foi inevitável. Não demorou para o cinema reproduzir esse dilema e criar uma nova fórmula de sucesso: os filmes de jovens lindos e ricos que se dividem entre o desejo individual e o casamento arranjado pela família.
Funcionou. Hoje a Índia produz 1 000 filmes por ano, em 20 das 22 línguas faladas no país (inglês incluído), contra 650 dos EUA. Em 2004, o número de espectadores de filmes de Bollywood alcançou 3,8 bilhões, ultrapassando pela primeira vez o público de Hollywood, formado por 3,6 bilhões de pes-soas. O cinema indiano, veja só, tornava-se o único Davi capaz de rivalizar com o Golias americano.
Não que o Golias esteja à beira de uma crise. Mesmo com um público menor, Hollywood é dona de 60% da renda da indústria cinematográfica mundial. E a Índia fica com apenas 1% – é que o ingresso sai em média por volta de R$ 1.
E claro que outros números deles também são modestos. Os orçamentos são de US$ 500 mil, em média – bem menos que os US$ 3,3 milhões de Cidade de Deus. E nada comparado aos mais de US$ 100 milhões de um Duro de Matar da vida.
Mesmo assim os estúdios americanos têm motivo para se preocupar.
Bollywood global
O cinema indiano cresce num ritmo ainda maior que o do resto da economia do país. O US$ 1,75 bilhão que ele arrecadou em 2006 deve crescer para US$ 3,4 bilhões em 2010. Em 2001, veja só, eram apenas US$ 617 milhões.
E agora começam a chegar as superproduções, com orçamentos inimagináveis por aqui. Lagaan (“Imposto”), de 2001 e indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro no ano seguinte, foi considerado caro para os padrões indianos da época, com um orçamento de US$ 4,5 milhões. Em 2002, Devdas (“Servo de Deus”) se tornou a obra mais custosa de Bollywood, com US$ 13 milhões. E em 2006 Dhoom 2 (“Grande”), assumiu a ponta, com US$ 20 milhões. Um dos sets de filmagem, aliás, foi no Rio de Janeiro. Nada mais adequado para uma superprodução.
Mais: nos países vizinhos, como Paquistão (161 milhões de habitantes) e Bangladesh (150 milhões), ele está bem mais presente que o cinema americano. Os 26 milhões de emigrantes da Índia e os 3 milhões do Paquistão espalhados pelo mundo também ajudam a levar Bollywood aos domínios de Hollywood. Mesmo num cenário como esse, um indiano virar o maior astro do mundo ainda pode soar a missão impossível, mas Shah Rukh Khan, o maior astro de Bombaim, já pode se gabar de ter batido Tom Cruise.
No fim de semana de estréia do filme Leões e Cordeiros (2007), o ator americano despontou nas bilheterias como uma das maiores estrelas decadentes de Hollywood; enquanto isso, o filme indiano Om Shanti Om (“A Vibração da Paz”, numa tradução livre) liderou as bilheterias internacionais com US$17 milhões contra US$ 10 milhões do filme com o top gun do cinema.
Mas esse cinema não vive só do público que conquistou nos países em volta da Índia ou dos imigrantes no primeiro mundo. Além de ganhar espectadores que não têm origem indiana na Europa, ele se deu bem com as próprias pernas nas nações da ex-União Soviética e no mundo muçulmano. Se é assim, alguma graça esses filmes indianos devem ter, não? É o que vamos ver agora.
Fonte: https://super.abril.com.br/